sábado, 22 de junho de 2013

Os protestos e a natureza da crise



A amplitude e a magnitude dos protestos indicam que há uma crise. Esta crise é menos de superfície e mais de profundidade, menos institucional e mais de governança, menos social e mais moral e de perspectiva. É também uma crise da alma, de necessidades, desejos e frustrações. O seu pano de fundo é a própria mudança social que ocorreu no Brasil nos últimos anos.
A Crise de Governança
A crise atual não é uma crise institucional clássica, de confronto entre poderes ou de risco de ruptura da ordem democrática e de golpe militar. Ao menos, até agora, esta questão não está posta. A fúria dos manifestantes se dirige contra os governos, todos os governos, mas não necessariamente contra o Estado. Pelo contrário: querem que o Estado resolva seus problemas. É exatamente aí que está o problema. O Brasil vem se caracterizando por ter governos, de todos os partidos, que não são capazes de resolver os problemas sociais – nomeadamente os do transporte público, os da saúde, os da educação e os problemas ambientais  e de cultura e lazer das grandes cidades. A lista é longa. Depois das políticas de inclusão e de renda houve uma espécie de falência da capacidade de inovação em políticas sociais. O Estado vem se revelando uma máquina pesada e ineficiente, que custa caro ao contribuinte e sem capacidade operacional.
Os governos não são capazes de produzir uma sociedade equilibrada, com uma distribuição adequada dos recursos públicos, de renda e riqueza. As classes médias baixas e a classe média percebem que tem dinheiro para os estádios da Copa, para as empreiteiras que superfaturam obras, para a isenção do IPI dos carros, para a isenção de taxação das grandes fortunas e dos bancos, para a farra do BNDES que financia empresas que nunca pagarão os empréstimos etc. Só não tem dinheiro para garantir os direitos básicos de milhões de pessoas, que vivem o inferno do trânsito e do transporte público das grandes cidades e a tragédia da saúde pública. Essas classes percebem aquilo que muitos estrangeiros já perceberam: “O Brasil é um país fantástico. É um dos poucos países do mundo que tira dos pobres para dar aos ricos”. O sistema tributário e a destinação dos recursos públicos são provas disso.
Os Representados e os Não Representados
As mudanças sociais ocorridas no final do século XX e no início deste século XXI criaram uma nova morfologia da sociedade. Com a ascensão dos serviços e com a revolução tecnológica a formação social da era industrial, com a tradicional divisão de classes, existe apenas residualmente. O que surgiu foi uma sociedade muito mais complexa, com uma variedade de subdivisões sociais relacionadas às tipologias do trabalho e renda.
Se somarmos os processos de luta pela redemocratização do Brasil, com conquistas sociais, de renda e de inclusão social após o período de redemocratização com a complexificação da sociedade, percebemos que, na sua forma empírica, a sociedade brasileira foi se dividindo em duas: 1) a sociedade representada pelos partidos, pelas corporações, pelos sindicatos, pelo Estado e pelos programas sociais e, 2) a sociedade não representada por essas instituições. A sociedade não representada também teve ganhos nos últimos anos, mas agora parece ter chegado ao limite. A sociedade não representada é composta pelas inúmeras subdivisões das classes médias baixas e classes médias médias. Foram os que ganharam menos. São os que têm uma seguridade social pública precária e aqueles que têm que comprar uma seguridade social cara no mercado. São os filhos dessas classes que estão engrossando as fileiras dos protestos nas ruas.
A sociedade representada teve nos partidos, nas políticas governamentais, nos sindicatos, a organização de suas necessidades, de suas demandas e de suas conquistas. A sociedade representada está relativamente satisfeita. De modo geral apoia o governo e olha os acontecimentos atuais com uma certa perplexidade. A existência dessas duas sociedades mostra que a Pax Petista e ambígua: em parte ela é real e em parte é enganosa.
O PT Perdeu o Rumo da História
O PT é responsável pelas principais conquistas sociais das últimas décadas, seja na sua virtuosa luta na oposição, seja com as políticas sociais no governo. Mas o PT caiu na mais elementar armadilha dos partidos e Estados (e até indivíduos) que conquistam o poder e adquirem nele uma certa estabilidade: perdeu a virtude da luta, assumiu várias práticas corruptas, perdeu a perspectiva da diferença etc. Ninguém, impunemente, aperta a mão de Maluf, apoia Renan Calheiros e aceita Marcos Feliciano. A lista seria longa.
O que ocorreu foi o seguinte: ao conquistar sindicatos, entidades, prefeituras, mandatos legislativos, governos estaduais e o governo federal, a militância ascendeu socialmente, melhorando a renda e o status social. Na medida em que a velha ideologia marxista faliu, o PT ascendeu sem uma ideologia republicana e estoica, da preeminência do bem público, da virtude da luta etc. Quanto isto acontece, normamente, aquilo que era virtude ontem, torna-se corrupção hoje. O PT não tinha em sua liderança um Péricles, um Cipião, um Cincinato, um Camilo ou mesmo um Washinton, um Thomas Jefferson ou um Lincoln – lideres que souberam temperar as vitórias e conquistas com as virtudes republicanas.
Os líderes do PT deixaram de tomar Conhaque de Alcatrão de São João da Barra no boteco da esquina e passaram a bebericar os melhores Whiskys, vinhos franceses e a frequentar restaurantes finos e hotéis luxuosos. Os convivas dos jantares das lideranças petistas são banqueiros, empreiteiros, grandes industriais, financiadores de campanhas etc. Líderes e partidos que corrompem seus princípios e seu modo frugal de vida, mudam de lado e perdem a perspectiva da história. O debate político e estratégico minguou e o governo está sem rumo. Dilma não consegue dar um rumo programático e moral ao país. É um governo sem um discurso coesionador, condutor e dirigente. A oposição está moribunda. O PT poderá se regenerar? Eis a dúvida! Não existe a luz da esperança na política brasileira.
Os Jovens e a Crise da Alma
Vivemos num mundo marcado pela falta de sentido e significação pessoais. A vida parece fútil e muitos se sentem desnecessários. Se cada um se perguntar “quem precisa de mim”, a reposta será difícil, pois as relações são marcadas pela indiferença, pela impermanência e pela volatilidade. O hedonismo efêmero tomou conta das pessoas, seja nas relações interpessoais ou no consumo. A presente revolta dos jovens é também uma revolta contra esta angústia de uma existência inútil, da indiferença humana. Por isto decidiram, através da Internet, trocar a frieza e a solidão angustiante da própria Internet pelo calor e barulho das ruas e praças. Ali há contanto humano, solidariedade, coragem, luta e orgulho.
Sentir-se útil e reconhecido, eis uma das principais motivações dos protestos dos jovens! “Orgulho de ter participado desse momento histórico para o Brasil !! Orgulho de ter lutado junto ao povo contra esse sistema de opressão da policia e da mídia manipuladora !! Orgulho de ter sido atingido por bombas de gás com os parceiros de luta!!! Orgulho de ver o povo na rua!!! Hoje me deu orgulho de ser Brasileiro !!”. Estas palavras, escritas pelo meu filho Federico no Facebook, são a expressão do sentimento de milhares de jovens que querem ser reconhecidos. Reconhecimento que lhes é negado pelos governos, pelos partidos, pelos sindicatos, pelas entidades estudantis, pelas ONGs, pela mídia manipuladora e pelo modo de vida hostil das grandes cidades.
Os Rumos do Movimento
Até agora o movimento tem um sentido altamente progressista, é um acontecimento histórico e marcará o futuro próximo. Embora existam reivindicações definidas, é também uma espécie de movimento de todos contra tudo. É uma fúria desesperada pela esperança. É um movimento multissocial e multitemático. Para ser um movimento pelo Brasil precisa ser um movimento por mais justiça e igualdade. É uma luta pelo reconhecimento dos não reconhecidos e de representação dos não representados.
Mas se o movimento não definir sua fisionomia, seu programa, seus objetivos, poderá se tornar um movimento do nada contra o nada. O que preocupa é que existem grupos neofascistas violentos no seu interior. Existem também grupos conservadores que querem viabilizar uma pauta de direita e de retrocessos sociais. Se a luta é por liberdade, direitos, contra a corrupção e por um Brasil melhor e mais justo, essas perspectivas conservadoras e neofascistas precisam ser barradas.
Todos têm direito de se manifestar. Quando só alguns querem esta exclusividade, a situação fica perigosa. Esta é uma advertência que paira sobre o próprio movimento. Ele terá que decidir se quer tirar um saldo político e organizativo dessa energia toda ou ser quer auto-exaurir-se em desperdício e frustração. Nos nossos corações e nos nossos conselhos devemos querer que ele seja partícipe da construção de um país mais justo e humano.
Aldo Fornazieri – Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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